08 Junho 2023
O papa nos lembra a olharmos para “o lado humano da guerra”, o impacto sobre vida das pessoas, as mortes, os refugiados, as viúvas e os órfãos. A guerra não pode ser examinada apenas em termos de “cálculos geopolíticos”. Muitas pessoas estão morrendo.
O comentário é do jesuíta estadunidense Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos Estados Unidos, de 1998 a 2005, e autor de “O Vaticano por dentro” (Edusc, 1998), em artigo publicado por National Catholic Reporter, 06-06-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco lançou uma missão de paz com o objetivo de encontrar um acordo para a guerra Rússia-Ucrânia, incomodando os aliados da Ucrânia com sua recusa em insistir que a Rússia saia da Ucrânia, como ponto de partida para as negociações. De sua parte, os russos simplesmente ignoram o papa.
Os apoiadores ocidentais da Ucrânia acusam o pontífice de equivalência moral, tratando ambos os lados como iguais. Isso não faz nenhum sentido.
Com apenas quatro semanas de guerra, o papa condenou a “violenta agressão contra a Ucrânia” e o “massacre insensato, no qual todos os dias se repetem carnificinas e atrocidades”, em seu Ângelus do dia 20 de março de 2022. “Não há justificativa para isso!”
O Vaticano sempre disse que quer uma “paz justa”. Quando Gerard O’Connell, da revista America, perguntou a dom Paul Gallagher, ministro das Relações Exteriores do Vaticano, o que significava uma paz justa para o Vaticano, ouviu de Gallagher que significava uma retirada das tropas russas do território ucraniano.
Isso não significa que o papa considera o Ocidente inocente. Em junho do ano passado, Francisco disse à La Civiltà Cattolica, revista jesuíta, que, alguns meses antes da guerra, um “sábio” diplomata não identificado havia expressado preocupação a ele sobre a Otan. “Estão latindo às portas da Rússia”, disse o diplomata. “E não entendem que os russos são imperiais e não permitem que nenhuma potência estrangeira se aproxime deles. A situação poderia levar à guerra”, concluiu o diplomata.
Embora Francisco tenha deixado claro que essa era a opinião do diplomata, é difícil não concluir que Francisco concordava com ele. Ele parece acreditar, assim como muitos no Sul global, que a Otan de alguma forma provocou ou não conseguiu evitar a guerra.
Francisco também observou “o interesse em testar e vender armas” aos combatentes na guerra. Não há dúvida de que o complexo militar-industrial estadunidense está lucrando na Ucrânia, tanto financeira quanto estrategicamente: a máquina de guerra russa está sendo severamente degradada sem a perda de uma única vida estadunidense.
Mas, respondendo aos que o acusam de ser pró-Putin, Francisco disse à La Civiltà Cattolica: “Não, eu não sou. Seria simplista e errôneo dizer tal coisa. Sou simplesmente contra transformar uma situação complexa em uma distinção entre mocinhos e bandidos, sem considerar as raízes e os interesses próprios, que são muito complexos”.
O papa reconheceu “a brutalidade e a ferocidade com que essa guerra está sendo travada” pelo lado russo. “Embora testemunhemos a ferocidade e a crueldade das tropas russas”, disse ele na entrevista à La Civiltà Cattolica, “não devemos esquecer os problemas e devemos tentar resolvê-los”.
O papa não está torcendo por nenhum dos lados nessa guerra, o que é uma qualidade essencial necessária em um mediador. O papa nomeou o cardeal Matteo Zuppi como enviado especial para a paz na Ucrânia. Ambos os lados usaram o Vaticano para facilitar a troca de prisioneiros, o que é um bom sinal.
Com a Ucrânia relutante em ceder qualquer um de seus territórios – incluindo a Crimeia, que a Rússia anexou em 2014 – há algo mais que apaziguaria a Rússia e permitiria a Putin salvar sua pele da derrota? Acho que sim: as armas nucleares.
O Ocidente sempre temeu que o Exército Vermelho invadisse a Europa – de fato, é por isso que a Otan existe. Como os Estados Unidos e a Europa não estavam dispostos a pagar por armas convencionais suficientes para deter aquilo que eles consideravam uma força considerável, eles contavam com as armas nucleares táticas como um impedimento para a invasão do Exército Vermelho.
Agora vemos que o exército russo é um exército de Potemkin, mais espetáculo do que conteúdo. Se a Ucrânia por si só puder conter os russos e obter vitórias, a Otan os eliminaria sem usar armas nucleares táticas.
Essa realidade militar exige uma reavaliação da política nuclear da Otan. Como parte da resolução da guerra Ucrânia-Rússia, a Otan e os Estados Unidos deveriam fazer duas coisas: primeiro, renunciar ao primeiro uso de armas nucleares na Europa. Segundo, negociar a eliminação ou, pelo menos, a redução das armas nucleares táticas na Europa.
A Ucrânia terá que concordar em não aderir “oficialmente” à Otan. A guerra já tornou a Ucrânia parte da Otan não oficialmente. A Ucrânia continuaria recebendo armas, mas nenhuma tropa da Otan pode ser posicionada em solo ucraniano.
Putin, como um autocrata autoritário, pode continuar essa guerra indefinidamente. Devemos dar-lhe algo para fazê-lo parar. Ele poderia salvar sua pele dizendo a seu povo que a guerra conseguiu forçar a Otan a fazer esse acordo.
Há uma tentação de deixar que a guerra continue enquanto a Rússia estiver bloqueada e sofrendo enormes perdas militares, na esperança especulativa de que isso derrubará Putin. Mas a Ucrânia também está sofrendo perdas militares e civis.
O papa nos lembra a olharmos para “o lado humano da guerra”, o impacto sobre vida das pessoas, as mortes, os refugiados, as viúvas e os órfãos. A guerra não pode ser examinada apenas em termos de “cálculos geopolíticos”. Muitas pessoas estão morrendo. O papa está certo em pedir a paz. Armas nucleares táticas desnecessárias na Europa seriam um preço barato a pagar por isso.
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Poderá o Papa Francisco promover a paz na Ucrânia? Artigo de Thomas Reese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU